Os inúmeros indícios que já eram observados por especialistas começam a ganhar mais importância, após a declaração de alguém que participou muito tempo da direção do Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), que é considerado a bíblia dos psiquiatras. No livro Saving Normal, Allen Frances afirma que a pressão e o lobby da indústria farmacêutica levaram à transformação de falhas simples do cotidiano em problemas mentais passíveis de tratamento medicamentoso.
Em uma entrevista recente ao jornal El País Allen Frances fez uma autocrítica, questionando os motivos que levaram a principal referência da psiquiatria contribuir tanto para o aumento nos tratamentos medicamentosos para questões tão simples da vida das pessoas. Veja abaixo os trechos principais da entrevista.
Saúde mental e o lobby da indústria
Um dos pontos criticados pelo autor é exatamente o DSM IV, do qual ele participou como diretor e onde foram colocados apenas dois dos 94 novos transtornos mentais sugeridos. Apesar do bom trabalho feito, ele Allen Frances afirma que não foi o bastante para frear as investidas da indústria. “O DSM IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução”, afirma.
Ainda de acordo com o psiquiatra, este aumento desenfreado do diagnóstico de problemas normais é péssimo para a saúde mental das pessoas. “O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação”, destaca.
Somos todos doentes mentais?
Se for olhar pelo que vem se transformando os diagnósticos psiquiátricos após a introdução de tantos transtornos, a resposta é sim, de acordo com Allen Frances. “Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão”, afirma, respondendo com ironia ao entusiasmo de seus colegas de profissão. “É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais”, completa.
O psiquiatra afirma ainda que os laboratórios estão enganando o público, ao reforçar uma ideia de que qualquer problema se resolve com comprimidos. “Os fármacos são necessários e muito úteis em transtornos mentais severos e persistentes, que provocam uma grande incapacidade. Mas não ajudam nos problemas cotidianos, pelo contrário: o excesso de medicação causa mais danos que benefícios. Não existe tratamento mágico contra o mal-estar”, ressalta.
Há solução?
Como uma possível solução para esta questão, o médico indica uma mudança de consciência. Segundo Allen Frances, é preciso “controlar melhor a indústria e educar de novo os médicos e a sociedade, que aceita de forma muito acrítica as facilidades oferecidas para se medicar, o que está provocando além do mais a aparição de um perigosíssimo mercado clandestino de fármacos psiquiátricos”.
Como exemplos de diagnósticos exagerados, o psiquiatra cita o aumento de casos. “Esse foi um dos dois novos transtornos que incorporamos no DSM IV, e em pouco tempo o diagnóstico de autismo se triplicou. O mesmo ocorreu com a hiperatividade. Calculamos que, com os novos critérios, os diagnósticos aumentariam em 15%, mas houve uma mudança brusca a partir de 1997, quando os laboratórios lançaram no mercado fármacos novos e muito caros, e, além disso, puderam fazer publicidade. O diagnóstico se multiplicou por 40”, destaca.
Saúde mental das crianças
Em relação ao aumento do diagnóstico em crianças, principalmente com base em observações de pais e professores sobre o desempenho da criança, Allen Frances destaca três coisas:
“Primeiro, não há evidência em longo prazo de que a medicação contribua para melhorar os resultados escolares. Em curto prazo, pode acalmar a criança, inclusive ajudá-la a se concentrar melhor em suas tarefas. Mas em longo prazo esses benefícios não foram demonstrados. Segundo: estamos fazendo um experimento em grande escala com essas crianças, porque não sabemos que efeitos adversos esses fármacos podem ter com o passar do tempo. Assim como não nos ocorre receitar testosterona a uma criança para que renda mais no futebol, tampouco faz sentido tentar melhorar o rendimento escolar com fármacos. Terceiro: temos de aceitar que há diferenças entre as crianças e que nem todas cabem em um molde de normalidade que tornamos cada vez mais estreito. É muito importante que os pais protejam seus filhos, mas do excesso de medicação”.
Ao final, o psiquiatra destaca a importância de se mudar de hábitos para viver melhor sem a necessidade do uso de medicamentos. “É preciso mudar os hábitos de sono! Vocês sofrem com uma grave falta de sono, e isso provoca ansiedade e irritabilidade. Jantar às 22h e ir dormir à meia-noite ou à 1h fazia sentido quando vocês faziam a sesta. O cérebro elimina toxinas à noite. Quem dorme pouco tem problemas, tanto físicos como psíquicos”, conclui.